PARTE III: O CLICI! NO DIA A DIA

 

 

UM MUNDO NOVO E COM REGRAS

Na casa de trás, a criança de um e dois anos aprende regras básicas de convivência social e organização: não vale bater no amigo; antes de comer, a gente lava as mãos; para pegar um brinquedo do amigo, tem que pedir emprestado. Aprende a sentar para beber água, aprende a levantar, aprende a andar sozinha, sem precisar ser levada pela mão para todos os lugares. Quando vai comer à mesa, tem que sentar na cadeira com as perninhas pra frente; se subir na cadeira, a cadeira vira. Acabou de lanchar, de almoçar ou de jantar, levanta da mesa, pega o prato, a colher, o copinho, põe tudo na bacia.

“Os aprendizados são inúmeros”, relata Dri. “Tem criança que não fala ainda, ela tem que se fazer entender de alguma forma. Tem que aprender a tirar o sapato, pôr sapato, tirar roupa, brincar de roda, esperar o amigo, dividir o colo e a atenção da educadora. Entender a rotina. Quando eles jantam, trocam a roupinha, a mãe chega pra buscar. Isso é um grande aprendizado, saber que a mãe (ou o pai, ou avô ou avó) os deixa aqui, depois volta pra buscar.”

A criança é convidada a participar de um mundo novo, diferente da família, um mundo que precisa de regras para funcionar. “Eles não têm competência para isso ainda, não vão ter até os três anos de idade, a gente sabe disso, mas precisa organizar as coisas minimamente pra que a turma funcione”, explica Dri. “É muito difícil para uma criança nessa idade dividir um brinquedo, porque ela é egocêntrica, o mundo existe a partir dela, a partir das necessidades dela.”

A criança gosta do grupo, mas quer que tudo seja do jeito dela, ela gosta do amigo desde que ele lhe dê o brinquedo na hora que ela quiser. O educador tem de saber disso, para não cobrar da criança o que ela não vai conseguir fazer. “Todo mundo brinca perto, mas cada um na sua brincadeira. Tem que ter colherzinha pra todo mundo. Esperar o outro acabar a brincadeira dele pra eu começar a minha é uma coisa impossível, não existe.”

Têm regras que a criança já encontra prontas – a primeira é que não vale bater no amigo, não vale tomar o brinquedo do amigo. “Quando batem, a gente chega imediatamente e diz: ‘Está vendo que seu amigo chorou? Pede desculpa pro seu amigo’. E pro amigo que foi agredido: ‘conta pra ele que você não gostou’. Às vezes eles não sabem falar ‘eu não gostei’, mas eles vão dar o recado. É um convite de novo: fala com seu amigo que você não gostou”, conta Dri.

Eles puxam o brinquedo do amigo porque ainda não percebem o outro. “A gente vai ter que falar que cada um tem sua vez de brincar, que não é legal tomar, que o amigo está chorando”, explica a educadora Izabela Siqueira. “A gente vai mostrando as emoções pra eles, que o outro fica triste, que não gosta.”

O limite é colocado de uma forma que a criança compreenda, não é preciso castigá-la. “Colocar a criança pra cuidar do amigo é um recurso que funciona muito, ela começa a perceber que o amigo está triste”, conta a educadora Marina Pongeluppi. “Outra coisa que eu faço é falar: ‘Vai dar uma voltinha; quando você estiver a fim, você volta’. E aí ele sai, dá uma volta, acalma, percebe que brincar sem os amigos é mais chato do que dividir os brinquedos, e volta.”

Outras regras são construídas em cada turma para que ela funcione enquanto turma. As regras são convites, algumas crianças dão conta, outras não, cada uma no seu tempo. “Isso é uma coisa que diz da autonomia da criança”, observa Dri. “As famílias chegam aqui e perguntam: ‘mas eles já comem sozinhos?’ Quando você tem só uma criança dentro de casa, demora a olhar aquele bebê como uma criança. Você dava as coisas quando ela era bebê, com um ano você dá ainda, com dois continua dando. Aqui não.”

A criança chega ao Clic! sem saber comer sozinha, a educadora ajuda, mas sempre dá uma colher para ela, porque acredita que, com um ano e dois meses, ela consegue fazer esse movimento, de pôr comida na colher e levar à boca. “É só ela ser convidada”, observa Dri. “Quando eles descobrem que conseguem, ficam muito felizes e não querem que ninguém ponha comida na boca deles em casa também.”

As crianças dessa idade não vão comer só com a colher, vão comer com a mão também. E tudo bem. Comer com a mão é uma necessidade desse organismo de um ano, ano e meio, dois. É um organismo que experimenta todas as coisas com o corpo. Não significa que vai comer com a mão a vida inteira. É que está numa fase de colocar tudo na boca: comida, brinquedo.

Normalmente, o educador convida as crianças a comerem sentadas à mesa. Teve uma vez, porém, que isso ficou impossível: elas caíam da cadeira, derrubavam o copo, não conseguiam sentar. Eram crianças do Maternal 1. “Então nós pensamos assim: ‘o problema está na gente, a gente não está sabendo oferecer a solução adequada”, recorda Dri. “A nossa tendência é falar que a criança dessa idade é muito desorganizada. Não é, ela tem uma organização diferente da nossa.”

A solução veio quando as educadoras resolveram fazer piquenique. Elas entenderam que em primeiro lugar vinha a refeição e partiram do que as crianças sabiam: sentar no chão. Aboliram mesa e cadeiras, estenderam toalha no chão, puseram pratos, copos e talheres em cima, e serviram a comida. Deu certo.

“Nós aprendemos muito com essa turma”, ressalta Dri. “Pra gente era imprescindível ensinar a criança sentar à mesa pra comer, e nós vimos que aquela turma especificamente estava falando que eles tinham outras necessidades.”

Ver o lanche ser servido, esperar sua vez, fazer uma coisa de cada vez, servir primeiro a fruta, depois o suco... Eram muitas novidades para crianças tão novinhas, que nem sabiam sentar na frente do prato. Acomodadas no chão elas aprenderam a lanchar juntas. Mais tarde passaram para a mesa.


A IDADE DA MORDIDA

O educador de Maternal 1 precisa entender que essa é uma idade em que a criança vai morder e que esse comportamento não expressa agressividade – não é a criança problemática que morde, são todas as crianças de até dois anos e meio. “Eu falo com os pais, quando matriculam o filho: Maternal 1 é a turma da mordida; seu filho vai morder e vai chegar em casa mordido. E quando estiver mordido vai doer lá no fundo do coração. Os mais gordinhos e fofinhos são os mais mordidos, porque é gostoso mordê-los”, conta Dri. 

A criança morde porque a boca é o centro da forma de conhecer o mundo. Os dentes estão nascendo, ela leva tudo à boca para conhecer, e morde. Ela acabou de mamar ou ainda mama, chupa bico. Quando vai saindo dessa fase, ela bate: ela quer um brinquedo, bate, toma o brinquedo, sai correndo. Quando está com raiva, ela bate. A criança também não sabe abraçar, ela abraça e aperta. “A primeira coisa pra trabalhar com criança dessa idade é saber que isso acontece, que não é um problema”, ensina Dri. 

O educador precisa saber também que vai falar 23 mil vezes ao longo do ano a mesma coisa, porque para aprender as crianças repetem. “Dá pra ver claramente: eles mordem uma vez, ficam muito assustados porque o amigo chorou, eles não entendem por que o amigo está chorando. Aí o educador vai lá e fala. Depois eles mordem de novo pra ver se é aquilo mesmo. E lá pela décima vez eles mordem e olham pro educador, porque eles sabem que o educador vai parar o que ele está fazendo”, ressalta Dri. 

Por isso a rotina é repetitiva, todo dia é tudo no mesmo horário, no mesmo lugar. “É difícil, é muito cansativo, quando têm muitas crianças novatas na mesma época é caótico. O que o educador precisa saber? Que o trabalho dele é a organização daquele sujeito desorganizado por natureza.”


LICENÇA PARA A BRINCADEIRA ACONTECER

Até dois anos e meio, a inteligência da criança é sensório-motora, isto é, ela usa seu corpo, que está em desenvolvimento motor, e as sensações para conhecer o mundo e agir sobre ele. Essa fase é o germe do conhecimento lógico-matemático, que vai acontecer lá adiante, na quarta série. A criança ainda não tem o pensamento elaborado, não pensa assim: vou levantar daqui, vou andar até o final da sala, vou pegar aquele lápis de cor e vou desenhar na parede. Ela descobre as coisas agindo sobre o mundo.

“Nessa idade, a inteligência avança transformando os ambientes”, observa Dri. Com base nisso, o Clic! monta o espaço físico e propõe atividades que atendam a essa forma de agir. A criança não fica sentada à mesa, pois precisa de espaço, precisa de pegar as coisas, trocá-las de lugar, precisa ter os brinquedos ao seu alcance, precisa de um espaço com pouquíssimo mobiliário, para não ficar limitada.

Os móveis, as cadeiras e as mesas são de plástico leve, que oferece riscos menores e que ela consegue carregar. A criança transforma o espaço em que está com as coisas que encontra, monta uma cabaninha, muda os objetos de lugar, conforme a brincadeira.

As brincadeiras são todas motoras e de descoberta. As crianças não vão brincar de toquinho só do jeito que o adulto brinca; o adulto está viciado, elas não estão. O adulto oferece toquinhos com
intenção de montar um castelo e a criança os transforma em carrinhos, em varinha de condão, usa-os para tirar som, para bater na parede, bate inclusive na cabeça do amigo, uma opção que o educador tem de antecipar.

Uma brincadeira das crianças do Maternal 1 exemplifica isso. “Uma vez nós pedimos sucata para fazer brinquedos e vieram muitos potinhos de yakult. Eles pediram pra amarrar barbante no potinho, um potinho era cachorro, outro era carrinho, outro era cavalo. Eles amavam isso, até hoje gostam de brincar de puxar o potinho”, recorda Dri. Esses brinquedos são chamados de semi-estruturados: barbante, corda, toquinho de madeira, tecido e algumas sucatas; o mesmo objeto pode ser muitas coisas.

Brincar com a criança é diferente de ver a criança brincar. “Nas duas formas a gente aprende, mas aprende coisas diferentes, como observador e como coparticipante. Algumas vezes a gente atrapalha, porque a gente tem muitas certezas e a nossa tendência é colocar essas certezas quando está brincando com a criança.”

As educadoras do Clic! aprenderam com a experiência que quanto mais oportunidades derem para a criança produzir a própria brincadeira, mais vão conhecê-la e mais vão acertar ao propor uma atividade. O papel do educador é oferecer os instrumentos para a brincadeira acontecer. “É muito legal vê-los brincando sozinhos”, comenta Viviane. “Acontece muita coisa, que, se você está na brincadeira, não acontece.”

“Nós, adultos, temos as nossas verdades, somos muito sabidos, e passamos por cima da criança com a nossa sabedoria”, observa Dri. “A gente acha que toquinho é empilhar, só empilhar. Quando é que a gente ia pensar que potinho de danoninho vira um cachorro tão interessante e um carrinho tão barulhento? A nossa ideia era fazer uma estrela, um enfeite.”

Os educadores do Clic! têm hoje funções que não tinham alguns anos atrás. “Antigamente, a gente pensava assim: ‘A gente precisa levar atividades que atendam a essa inteligência sensório-motora, alguma coisa que vai fazer essa inteligência caminhar.’ Hoje em dia é isso também, mas a gente precisa dar licença pra brincadeira acontecer, porque a criança também produz cultura, ela também produz sua brincadeira, ela também inventa, ela também acrescenta”, ensina Dri.


O CASO DA PINTURA 

Certa vez a educadora do Maternal 1 quis que sua turma pintasse. Foi orientada a deixar as crianças só de fralda, para não se preocupar com a roupa, pois elas iriam se sujar. Ela levou tintas, pregou na parede papel grande e distribuiu pincéis. As crianças bateram os pincéis no chão, na parede, puseram pincel na boca, depois os jogaram fora e foram brincar com a tinta. Aflita, a educadora encerrou a atividade. Mais tarde, na supervisão, lamentou: “Deu tudo errado, eles não quiseram pincel, não quiseram pintar”. Dri conversou com ela, concluíram que a criança de um ano e meio, dois anos, pinta com o próprio corpo. “Quem falou que é com pincel? Pincel é um instrumento, ele serve pra muitas coisas, não só pra pintar.”
 

No dia seguinte, a educadora chegou animada, trazendo de novo tintas e pincéis; forrou a sala inteira com jornal, pregou jornal na parede. Do mesmo jeito que ela pôs as tintas, ela dispôs os pincéis, e deixou as crianças pintarem. “E foi maravilhosa a pintura”, recorda Dri. “Eles pintaram uns aos outros, na barriga, no chão, pintaram com o pé, com a mão, fizeram círculos enormes, passaram o dedinho.”
 

Ao contrário do dia anterior, a atividade foi muito calma. No dia que a educadora ofereceu pincel, as crianças ficaram agitadas e ela, nervosa, foi recolhendo tudo. No dia que deixou as crianças à vontade, pensando: “As minhas crianças vão pintar com o corpo porque é assim que elas conhecem o mundo”, foi muito calmo e elas ficaram muito tempo nisso. Depois ela conseguiu dar banho em todo mundo com muita tranquilidade – tirar a tinta do corpo virou outra brincadeira.
 

Aquela atividade foi a mais produtiva que o grupo fez. A educadora se desapegou de uma certeza que ela tinha, de que a pintura é com pincel no papel que ela pregou na parede; entendeu que, aos dois anos de idade, conhecer a tinta é uma coisa do corpo inteiro. Naquele dia as crianças aprenderam sobre tintas, cores, transformação, pintura, sensações. Descobriram que a tinta no corpo é uma delícia, escorrega, lambreca, é gelada...


O GRUPO E A IDADE 

Embora as crianças se organizem em turmas por idade, cada uma com o seu educador, elas também desenvolvem atividades das quais participam outras turmas. Muitas vezes o educador planeja uma atividade para todas as crianças do mesmo turno fazerem juntas, ou todas as crianças da mesma idade, nos dois turnos.

Depois do carnaval, o número de crianças era menor e alguns educadores emendaram o feriado. Todas as crianças da casa da frente no turno da manhã fizeram a roda juntas, a educadora propôs uma pintura coletiva em tecido, todas pintaram juntas, cada uma do seu jeito: com os pés, com as mãos ou com o pincel. “Ficou lindo e eles amaram. Depois de pronta, cada um sabia onde tinha pintado e o que tinha naquela pintura”, conta Dri.

As crianças que fazem aniversário em janeiro, fevereiro, março e abril são as mais novinhas. As crianças que fazem aniversário até 30 de abril vão sair do Clic! com cinco anos. Ficam na mesma turma das que fazem seis a partir de 1º de maio. O Clic! não tem rigidez para agrupar: se a criança fica melhor na turma dos mais velhos ou na turma dos mais novos, ela muda de turma, o importante é que desenvolva bem no grupo em que ela está.

Nas crianças de maio e junho, em geral as mais velhas da turma, percebe-se o desenvolvimento cognitivo um pouco mais rápido do que as outras. Isso não significa que deva passar para a turma da frente; quando isso é feito, elas travam, porque ainda não têm todos os recursos daquelas que são até onze meses mais velhas do que ela. “É uma questão de amadurecer, elas só vão um pouquinho mais rápido”, explica Dri.

Com as crianças nascidas em abril acontece o oposto, elas têm que correr um pouco mais para acompanhar as outras. Se elas derem conta, elas ficam. O que não pode é o esforço ser maior do que a capacidade da criança; neste caso, é melhor mudar de turma. Esse “atraso” não é um problema, porque, na verdade, ela não vai atrasar, vai se adequar, vai ficar mais à vontade na nova turma.

“A criança precisa ter confiança nela e desenvolver seu potencial”, explica Dri. “Não pode ficar massacrada, nem pode ficar estagnada e desestimulada. E isso é muito particular, depende muito da pessoa.”

A educadora Mariana Tibo, que já trabalhou com o Grupo 1 e com o Grupo 2 compara as diferenças entre as duas idades: “No Grupo 1, tudo explode no corpo: se a criança fica brava, ela bate; se está feliz, abraça apertado. As do Grupo 2 já dão conta de parar e pensar”. Ela explica que trabalha muito essa pausa, ensinando as crianças a perceberem as consequências das suas ações. No Grupo 1, tudo ainda é fantasia. No Grupo 2, o raciocínio começa a se impor, a lógica é mais forte e a concentração, maior; uma brincadeira pode durar a manhã inteira.

A ideia do grupo é muito forte. “Cada grupo de crianças é um grupo e vai caminhar de acordo com as suas características”, observa Marina Pongeluppi. “É o grupo que vai direcionar até que ponto a autonomia já começou, não é a idade. É o sujeito que vai determinar a idade, não é a idade.”

A criança não tem que atingir metas definidas para sua idade. O que se pretende é que ela adquira competências e cresça cada vez com mais autonomia, de acordo com sua individualidade. “Algumas crianças gostam mais de expandir, de brincar, de correr, de atividades mais motoras. Outras gostam mais de se concentrar, de desenhar, de ficar mais quietas”, observa Carol Maciel. “Talvez umas terminem o Maternal 3 desenhando muito; outras, sendo super-habilidosas nas brincadeiras de correr. Todas não precisam adquirir as mesmas competências no mesmo grau.”

O que fica para as crianças é a forma como elas podem conhecer todas as coisas. “Não está nas mãos do adulto todo o saber, não é o adulto que vai falar assim: ‘Eu te dou uma folha em branco, um pincel e você vai ter que pintar neste movimento’. Oferecendo material, elas vão descobrir o que fazer com ele”, ensina Dri. “A gente vai aprendendo que algumas bagunças levam a um aprendizado.” Na oficina de culinária, por exemplo, descascar frutas, picar, separar a semente, significa se lambrecar da cabeça aos pés.


AS TURMAS TÊM NOME

As turmas do Clic! têm nome, escolhido pelas crianças, com o educador. Esta foi uma forma encontrada para dar identidade ao grupo. Embora a nomenclatura do Clic! seja parecida com a das escolas (Maternal 1, Maternal 2, Maternal 3, Grupo 1 e Grupo 2), cada turma tem um nome, que muda a cada ano e que indica que ela é única.
 

Quando as crianças são muito pequenas, a educadora dá um nome que tem a ver com a turma, por exemplo: Turma da Pipoca, Turma do Coelhinho, Turma do Balão... A partir dos três anos, elas têm o maior prazer na escolha. “Chega a ser um desafio escolher um nome que tem a ver com eles”, conta Dri. Já teve Turma do Dente-de-leite, porque estavam trocando de dente; Turma do Pé no Chão, crianças que amavam ficar descalças... 

No começo de 2009, as educadoras Marina e Júlia decidiram pôr o nome de Turma do Sapo no seu grupo de Maternal 2. No segundo semestre, porém, quando Marina perguntou o nome da turma, uma criança respondeu: Turma da Girafa. Marina achou que ela fazia confusão, mas a menina argumentou: “Antes a gente era pequena, e aí vocês escolheram Turma do Sapo. Agora a gente cresceu, então tem que ser Turma da Girafa”. Todos se identificaram com o novo nome, pois tinham se interessado muito pela girafa naquele ano, e a mudança ganhou dois significados: que eles cresceram e que já eram capazes de escolher o nome da turma. 

Às vezes é difícil chegar a um consenso. O Grupo 1 da manhã em 2009 ficou dividido; os meninos queriam nomes masculinos, que as meninas não aceitavam, e as meninas queriam nomes femininos, que os meninos jamais aceitariam. Ao fim de algumas semanas, chegaram a um acordo, quando um menino sugeriu um nome neutro, que agradou os dois gêneros: Turma do Chup-chup. 

Às vezes o nome é escolhido imediatamente, alguém dá uma ideia e o grupo aprova com entusiasmo. O Grupo 2 da tarde, em 2009, era a Turma da Imaginação; todos gostaram porque se achavam uma turma muito criativa. A turma do Maternal 3 ouviu uma história de elefantes e gostou muito. A educadora propôs o nome e ele foi aprovado na hora: Turma do Elefante. Ela faz um barulho imitando o som dos elefantes que as crianças acham a melhor coisa do mundo.


COMPARTILHANDO O ALIMENTO

As refeições do Clic! são terceirizadas pela Maria e pelo João; são eles que fazem as compras, preparam, cobram, recebem. Os cardápios foram feitos por uma nutricionista. O lanche tem sempre uma fruta, servida à vontade, um suco de fruta natural feito na hora (exceto os de caju e uva), e o complemento: bolo, broa, pão ou biscoito feitos no Clic!, nunca achocolatado nem recheado.

O almoço e o jantar também seguem um cardápio mensal: arroz, feijão, carne de frango ou boi (nem peixe nem carne de porco), algum legume cozido e salada variada.
Os lanches são servidos às 9h e 15h (uma turma lancha às 15h30); o almoço é às 11h30 (Maternal 1 e 2) e ao meio-dia (demais turmas); o jantar, às 17h.

Quando a criança traz seu próprio lanche, os pais recebem o cardápio de orientação. Pede-se que elas não tragam guloseimas, como chips, biscoitos recheados e achocolatados – refrigerantes, em hipótese alguma. A preocupação é que as refeições sejam naturais, nutritivas e saudáveis.

Antes de se alimentarem, todas as crianças lavam as mãos. Algumas turmas se servem, algumas ajudam a servir, depende da idade. Todas podem repetir quantas vezes quiserem. Quando começam a se servir, não sabem a medida do que vão comer, e os educadores as ajudam.

As crianças do Maternal 1 e do Maternal 2 são servidas pelos educadores. O ritual começa com uma musiquinha: “Meu lanchinho, meu lanchinho, vou comer, vou comer, pra ficar fortinho, pra ficar fortinho, e crescer, e crescer...” Quando a educadora começa a cantar eles já sabem que é hora do lanche. “Eles adoram o lanche”, conta Izabela Siqueira. “Tem criança que não gosta muito de comer a fruta, ou de tomar o suco. A gente explica que faz bem pra crescer, fala: ‘Vamos ver primeiro se a barriga vai gostar’. Elas pegam os pedacinhos de fruta com a mão. O copo é aquele fechadinho, com tampa.”

Na casa de baixo, os ajudantes do dia pegam os pratos, os copos, os garfos, as colheres. “Eu separo a quantidade de frutas e vou entregando o prato pras crianças entregarem umas pras outras, fazendo passa-passa-gavião. O Pablo entrega os copos com suco”, conta Luciana Santiago, educadora do Grupo 2. A criança tem que prestar atenção para não derrubar o suco, para o prato não ir para o amigo errado, porque um gosta de mais fruta, outro gosta de menos, e todos se envolvem na brincadeira. “A gente coloca porções de pão, bolo, o que tiver, nos pratinhos na frente deles, pra eles se servirem, senta e lancha com eles.”

Os educadores compartilham o lanche com as crianças: sentam à mesa, comem da mesma comida, participam desse momento. Nem sempre foi assim. Ou porque não cabiam na mesa ou por causa da correria, eles lanchavam em pé, enquanto ajudavam as crianças a se servirem. “A Sílvia, uma educadora que não está mais aqui, sempre sentava com eles, e a gente foi percebendo que isso os deixava mais tranquilos, que o lanche ficava mais organizado”, recorda Luciana, que adotou a mesma prática.

Ela conta que, lanchando com as crianças, percebe os assuntos que estão rolando entre elas, tem ideias para brincadeiras e conversa sobre coisas que precisam ser conversadas. “Quando a gente está envolvida na atividade, eles também se envolvem mais, se acalmam e fazem com mais carinho, com mais atenção, seja lanchar, seja desenhar.”

No almoço e no jantar, as crianças dos Grupos 1 e 2 se servem quanto quiserem, mas têm de colocar pelo menos um pouquinho de tudo. Raramente há alguma criança inapetente. “A gente vê que é daquele organismo, é mais magrinha, não se interessa por comida, prefere fazer tudo a comer, mas é uma ou outra. Em geral, é o hábito da família que se manifesta nas refeições, e a gente ajuda nesse hábito”, explica Dri. A preocupação do Clic! é ajudar na formação do hábito da refeição. “Antigamente, a família sentava para comer junto; hoje os pais não estão em casa fazendo refeições com os filhos.”

As educadoras do Clic! usam muitos recursos para incentivar a alimentação. “Às vezes a mãe diz que o filho não come fruta. “Experimenta! Ensina pra sua boca comer”, sugere a educadora à criança. “Cheira a fruta, às vezes você gosta.” Ou então: “Você não gostava, quem sabe sua barriga já quer comer essa fruta?”. Ou ainda conversando sobre os alimentos: “Ah meninada, sabe pra que essa fruta é boa? Beterraba é boa pra quê? Cenoura é boa pra quê?”. Às vezes a refeição motiva pesquisas; as crianças começam a perguntar: “Pra que que serve? Batata é bom pra quê?”

As educadoras não obrigam a criança a comer, mas insistem e procuram convencê-la. Todos os alimentos servidos na refeição são colocados no prato da criança, mesmo que ela diga que não gosta. “Não tem problema, deixa no cantinho”, argumenta-se. E o próprio grupo incentiva a criança, quando ela vê o amigo do lado comendo com a melhor boca do mundo.

“Uma vez teve um grupo muito chato com salada”, conta Dri. “Aí a gente fez um concurso de pulo pra ver quem tinha comido mais salada: quem comesse mais daria o pulo mais alto. Todas as crianças, sem exceção, comeram. Comeram, acabou o almoço, escovaram os dentes, foram pro pátio pra ver quem pulava mais alto. E elas acreditaram piamente que quem pulou mais alto comeu muita salada.”

A oficina de horta é feita também em função da alimentação. As crianças aprendem sobre o cultivo das verduras e legumes: plantar, regar, colher, lavar, provar. “É um jeito de se ter uma relação boa com o alimento”, observa Dri.


ACHADOS E ESQUECIDOS

O Clic! dá autonomia para as crianças aprenderem a cuidar das suas coisas. No dia a dia, a criança vai ao seu escaninho e pega roupas, brinquedos, caderneta, no momento que ela quer. Nesse aprendizado ela perde coisas. Às vezes, ao puxar um objeto do escaninho, outro cai, a criança não vê e os educadores não sabem de quem é ele. Outras vezes, a criança esquece um objeto pessoal num canto qualquer porque se distraiu com a brincadeira ou com o chamado de um amigo.
 

Esses objetos, principalmente roupas e brinquedos, vão sendo reunidos em uma caixa. Às vezes os pais dão falta, às vezes não. Calcinhas, cuecas e blusinhas, que vêm em maior quantidade, ficam às vezes tanto tempo esquecidas que no dia em que a criança vai vestir não servem mais. Ou então muda a estação e a roupa sai de uso. “Quando a casa era pequena, a gente conhecia as roupas pelo cheiro”, recorda Dri. “Ficava a blusa perdida, a gente cheirava e falava: ‘é do Fulano’.”
 

De tempos em tempos, a caixa de achados e esquecidos é esvaziada. Periodicamente, os objetos são postos em exposição na entrada do Clic!, para que os donos os reconheçam. Funciona em parte: tem objeto cujo dono nunca aparece. No fim de ano, quando o Clic! entra em recesso, doa muita coisa. Entre uma exposição e outra, as roupinhas têm utilidade. Quando a criança molha ou suja a roupa e não tem roupa reserva, normalmente um amigo lhe empresta. Mas, se nem o amigo tem, ela recorre à caixa de achados e esquecidos, onde certamente encontra alguma peça que lhe serve. 


COMBINANDO O DIA: A RODA

Das 9h às 10h, o pátio do Clic! fica surpreendentemente vazio e silencioso. Não tocou nenhum sinal, mas as crianças vão todas para o refeitório. Depois do lanche, cada educador reúne sua turma num canto da casa para fazer a roda. A roda é um momento mais íntimo do grupo. É também a atividade mais importante do dia, porque nela é organizada a rotina. No turno da tarde ela acontece às 14h.

Esta é uma característica importante dos educadores do Clic!: eles não chegam para trabalhar com uma agenda de tarefas. “Na escolinha existe o plano de aula que a professora precisa cumprir. Aqui, ao contrário, as educadoras precisam vir com o livro em branco, para escutar as crianças”, explica Letícia. “A gente enxerga a criança como sujeito, ela é ouvida e as coisas que fala são consideradas.”

É um trabalho difícil, de superação de conceitos e preconceitos que estão na cabeça dos adultos. O educador precisa ter o pé no chão e a cabeça focada no trabalho para estar verdadeiramente com as crianças. Ele tem suas intenções, conhece o perfil do grupo, sabe o que quer trabalhar, mas convida o grupo a participar junto com ele. E o que é decidido na roda é o que eles vão fazer naquele dia.

Quando todo mundo senta em roda e combina o que vai fazer, o grupo equilibra os sujeitos. Cumpre ao educador mediar. “Se uma criança quer passar por cima de todo mundo, só ela falar, o educador tem que pontuar: ‘Fulano, agora a gente vai ouvir os seus colegas, vamos esperar todo mundo falar’. Mas o que é muito quietinho, se não fizer um esforço, pequeno que seja, pra se colocar, ele nunca vai ser ouvido”, observa Dri.

No Maternal 1 a roda começa com uma musiquinha: “Oi abre a roda tindô lelê, oi abre a roda tindô lalá”. Todo mundo vai dando a mão, cantando e rodando, antes de sentar. “Bate o pé tindô lelê, bate o pé tindô lalá...” “Vamos cantando e inventando brincadeiras”, conta Izabela Siqueira, que divide a turma com a estagiária Bárbara. “Eu falo assim: ‘Meninada, o que nós vamos fazer hoje?’ Se eles não sabem, a gente dá ideias.”

A partir do Maternal 3, as crianças já chegam na roda com suas cadernetas. O primeiro passo, então, é o educador ler as cadernetas, ver se tem algum recado da família. “Depois, normalmente, eu pergunto se alguém trouxe alguma novidade, que pode ser um objeto, um livro, ou se quer contar alguma coisa interessante que aconteceu”, conta Carol Maciel. Normalmente, segunda-feira é o dia que tem mais novidades, porque as crianças querem falar de um passeio que fizeram no fim de semana. “Eles gostam muito de contar o que fizeram em casa”, acrescenta Viviane Prates.

“Depois das novidades, eu pergunto quem sabe que dia da semana é aquele, se eles lembram qual a oficina que tem nesse dia”, continua Carol. “Aí, por exemplo, se é oficina de horta, e alguém tem alguma ideia, a gente pode levar pra oficina. Já aconteceu algumas vezes de crianças trazerem sementinha pra plantar. E assim a gente monta a rotina do dia. Termina a roda, vai lavar a mão, lanchar, depois do lanche tem a oficina...”

Às vezes a roda começa com uma poesia, às vezes com a leitura de um texto científico sobre o assunto que o grupo está trabalhando. Em maio, quando se preparava a festa junina, a Turma da Imaginação aproveitou a roda para pesquisar a dança do cacuriá, do Maranhão. “Muitas crianças trazem um livro pra roda e pedem pra ler”, conta Luciana Santiago. As crianças gostam muito de repetir o que já fizeram no dia anterior, por isso o educador sempre oferece brincadeiras novas. “Ontem a gente fez uma pintura de soprar no canudo e eles adoraram”, conta Viviane.

É na roda que o educador lê para as crianças bilhetes e combinados da casa. Foi na roda, por exemplo, que os grupos ficaram sabendo que o Clic! estava preparando um festival de brincadeiras de rua. “E a gente fez uma lista de brincadeiras que gostaria de brincar na rua e dos materiais necessários”, conta Carol Maciel. No dia de culinária, é na roda que o grupo faz a lista dos ingredientes. “Tem dia que a roda dura dez minutos, tem dia que dura cinquenta, porque faz lista, todo mundo quer falar, o assunto é gostoso e as crianças ficam entusiasmadas.”

O educador tem que ter a delicadeza de saber que hora ele entra e que hora ele deixa seguir. As crianças pequenininhas necessitam de que o educador interfira muito. O educador fala: “Já sei, vamos fazer assim: ‘Quem quiser falar levanta a mão, que aí eu posso escutar todo mundo. O que vocês acham?’ Ou então: “Agora a gente vai ouvir o Fulano, agora a gente vai ouvir o Sicrano.” Ele ensina, mas ensina de um jeito cooperativo, mesmo porque ele convidou as crianças para participar da rotina.

Às vezes o combinado não dá certo. “Hoje a gente combinou fazer uma cabaninha depois da roda, mas a roda foi muito longa, chegou a hora do lanche e não deu tempo”, conta Viviane. “A gente pegou as coisas pra construir a cabana, mas eu vi que não ia dar tempo de brincar. Então eu fiz roda, expliquei pra eles e perguntei: ‘Será que a gente pode fazer a cabana amanhã?’ Muitos perguntaram por que, de novo, eu expliquei, e eles concordaram.”

À medida que o grupo se forma, as crianças se sentem acolhidas e ganham confiança nos amigos. Acontece de uma criança chegar triste, outras perceberem e perguntarem por quê. Ela conta: “Eu briguei com a mamãe”. Um deles procura consolar: “Não fica triste, não, eu também brigo com a minha mamãe”. Outra criança reclama da irmã mais nova: “Ela mexe nas minhas coisas, atrapalha minha brincadeira!” E recebe a solidariedade do colega: “Meu irmão também atrapalha minha brincadeira”.

É muito importante que as coisas oferecidas à criança façam sentido para ela. Uma vez as crianças do Maternal 2 acharam um casulo na parede em frente ao pátio. Um falou: “Que é isso?” O outro: “É cocô”. A educadora explicou que era um casulo, que um bichinho, a lagartinha, fez o casulo e quando ela saísse dele ia virar borboleta. Todos os dias as crianças iam lá ver o casulo. A educadora então propôs estudar a metamorfose. Pediu ajuda aos pais, mandou bilhete, contou que as crianças estavam interessadas. Elas amaram fazer a pesquisa, foi a primeira pesquisa da vida delas. Os pais se envolveram, cada criança trouxe uma coisa: música, poesia, desenho, livrinho, foto, vídeo de massinha...

Um dia eles chegaram ao Clic! e o casulo tinha desaparecido. Ninguém soube dizer o que aconteceu, o casulo não estava na parede mais. A casa inteira, porém, tinha se envolvido na pesquisa. Os meninos mais velhos puseram um tanto de lagartas num potinho, uma delas grudou na tampa, começou a fazer um casulinho, e eles deram de presente para o Maternal 2, que acompanhou essa lagartinha até sair do casulo.

O maior sucesso na Turma da Imaginação em 2009 começou na roda. Uma criança folheava um livro. Quando chegou às páginas que falavam de vulcões, todos se interessaram. “Foi uma roda de 45 minutos só lendo sobre vulcão”, conta Luciana Santiago. “A gente leu sobre as placas tectônicas, como é que acontece terremoto, como é que acontece vulcão.”

No dia seguinte, outra criança trouxe de casa um livro sobre vulcões e o interesse aumentou mais ainda. “A gente pegou uma bacia com água e dois isopores pra mostrar como são as placas tectônicas, eles mexeram bastante, acharam divertido”, continua Luci. Um menino falou: “Eu queria tanto fazer um vulcão!” E os educadores resolveram simular um vulcão, usando argila e tubinho de filme fotográfico. Cada criança fez e pintou o seu vulcão.

O grande momento do projeto foi a explosão dos vulcões, simulada a partir de uma mistura de bicarbonato, corante, vinagre e água. Para delírio das crianças, o líquido borbulhou e saiu pela boca do vulcão, como se fosse lava. “Eles adoraram”, recorda Luci. “Os projetos surgem assim. As crianças participam do início, do meio e do fim de tudo. Os educadores entram nas vontades delas de pesquisar, de procurar, de fazer as coisas. Daí surgem coisas superlegais.”


SENTA QUE LÁ VEM HISTÓRIA 

Quase todos os dias as crianças ouvem história. Às vezes querem história de terror, às vezes de princesa; a escolha é feita na roda. “A roda geralmente é o momento em que acontece a leitura, mas ela também pode acontecer em momentos de transição, entre a oficina e o lanche. É bom porque eles acalmam”, explica Luciana Santiago.
 

Os educadores variam muito a forma de contar história. Contam história debaixo da jabuticabeira, na biblioteca, na sala de almofadas, na grama; usam dedoche, fantoche, projetor de slides. Um dia, uma educadora desenhou uma história em lâminas e as projetou na parede.
 

As crianças adoram ouvir histórias de boca, que é como chamam a história que não é lida. “São as histórias em que os meninos mais prestam atenção”, observa Carol Maciel, que já contou história de boca para todas as turmas da tarde juntas, na sala de almofada. “Posso contar histórias clássicas, tradicionais, ou uma história que eu ouvi um dia e aprendi. Lenda indígena, por exemplo, é mais legal ouvir do que ler. Às vezes eu procuro um livro, leio e depois conto aquela história pras crianças.” É comum, depois de alguns dias, elas falarem: “Sabe aquela história? Como que é mesmo?”
 

Carol procura escolher histórias que têm a ver com a turma. “Já passei três meses lendo Reinações de Narizinho para o Grupo 2; eles queriam mais todos os dias”, recorda. Para crianças menores, porém, ela prefere histórias curtinhas, com bichinhos. Em 2009, a Turma da Imaginação devorou durante semanas uma adaptação da Odisséia feita pela escritora Ruth Rocha.


UMA COISA PUXA OUTRA 

Quando as crianças da Turma da Imaginação desenvolveram o projeto do vulcão, já conheciam argila. O material tinha sido usado na oficina de artes plásticas, que também trabalha com colagem, desenho, pintura, explorando diversas linguagens e oferecendo sempre novidades. “O que faz a oficina funcionar é o ambiente, é as crianças gostarem do que eu trouxe. Elas sempre querem novidades”, conta a arte-educadora Lílian Oliveira. A argila, por exemplo, as crianças manusearam, abriram, fizeram pequenos rolos, criaram pequenos brinquedos. Depois exploraram pintura com pincel e com esponja.

Oficinas sempre fizeram parte do Clic! Em 2009 foram quatro, para as crianças da casa da frente: artes plásticas, música, jogos e brincadeiras, horta e capoeira. “Para o Maternal 2, a gente começa a introduzir as oficinas no segundo semestre, quando eles já estão frequentando a casa da frente com mais segurança”, explica Dri. As crianças da casa de trás têm oficina de música.

Um dia da semana não tem oficina, e a horta não é feita o ano todo, depende das estações; tem um período mais intenso e outro menos intenso. Cada turma tem seu horário. Há um esforço para que as oficinas se integrem de forma harmônica às demais atividades. “Às vezes a brincadeira está muito produtiva e tem que parar porque é o horário da oficina”, explica Dri.

Principalmente no turno da manhã, que é menor, pois as crianças vão chegando até nove horas, a quebra na rotina atrapalha. “O que a gente quer fazer é ter a oficina disponível, para as crianças participarem no tempo delas. Dependendo da idade, a criança vai conseguir ficar mais ou menos tempo. Vai passar pela oficina, fazer aquilo que foi proposto e voltar com a sua turma pra uma brincadeira que está acontecendo.”

A oficina de artes plásticas também é fundamental na preparação da festa junina. Em julho, a atividade foi outra: costura customizada. Usando agulha sem ponta, americano cru, sacos plásticos, retalhos, fitas e botões, as crianças criaram almofadas originais. “Eu fico atenta para não cair na educação artística, que é confecção de produtos”, explica Lílian, que já foi também arte-educadora de expressão corporal. Ela acrescenta que no Clic! não há prazos para que as atividades sejam concluídas.

Para ensinar capoeira às crianças, a arte-educadora Camila Alterthum associa os movimentos da luta aos movimentos dos animais. Ela explica que a capoeira angolana tem origem no ritual de acasalamento das zebras. Outros movimentos também fazem referência a animais: macaquinho, rabo de arraia. “Sempre busquei elementos da capoeira que fizessem sentido na vida das crianças”, diz. “Esse universo dos bichos é muito atrativo pra elas.”

A aula é acompanhada de música tirada de instrumentos como atabaque e berimbau. As crianças pegam os ritmos, aprendem os cânticos. Uma das coisas mais bacanas do aprendizado é o ritual de sentar, esperar a vez, jogar, cumprimentar o companheiro antes e depois do jogo. “Capoeira é um jogo em que um depende muito do outro, por isso combina muito com a proposta do Clic!”, observa Camila. “Não é um esporte competitivo.”

No Clic! uma coisa puxa outra. Camila dava oficina de capoeira quando o Clic! implantou a coleta seletiva, em 2007. Com o lixo orgânico ela preparou um canteiro de compostagem, em volta de um pé de jabuticaba, com participação das crianças do Maternal 3, Grupo 1 e Grupo 2. “O pessoal da cozinha separava cascas de frutas, restos de folhas, todo o lixo orgânico, a gente ia colocando no canteiro da jabuticabeira e misturando com as folhas da mangueira, que era o grande volume de resíduos”, lembra Camila. Esse canteiro daria origem à oficina de horta e jardim.

O canteiro foi dividido em quatro para dar tempo de o lixo ir apodrecendo. Cada vez que ia colocar mais restos da cozinha, o grupo abria a camada de folhas, que ficava por cima, para não dar cheiro, misturava o lixo novo com o que estava em decomposição. As crianças se impressionaram vendo formigas, tatu-bolinha e outros bichinhos. “Eu mostrava o fungo pra eles, mostrava que aquilo também era um ser vivo que estava comendo lixo e ajudando a transformá-lo em outra coisa, que podia ser útil pra gente”, conta Camila. Depois de cinco meses aqueles resíduos tinham se transformado em adubo. O material foi peneirado e usado para adubar canteiros que estavam sendo preparados.

No começo, a oficina de horta e jardim ocupou dois canteiros na fachada da casa, depois passou aos canteiros que ficam nas laterais da rampa de entrada. “Quando começou a compostagem, a gente passou a cuidar dos canteiros e teve vontade também de plantar coisas mais específicas, além de flores. E eu fui me apossando dos canteiros, junto com as crianças”, conta Camila.

Aos poucos foram plantadas hortaliças como beterraba, cenoura, salsinha, tomate, alface, brócolis, rabanete, berinjela e até feijão. Outras plantas nasceram espontaneamente. No canteiro de compostagem, das sementes colocadas junto com cascas da fruta, brotou um pé de maracujá. No canteiro da entrada, grãos de milho de pipoca caídos de um enfeite da festa junina fizeram brotar um milharal. “Não sei se é a terra ou é a mão, se é a energia dos meninos, mas as coisas crescem bem aqui”, ressalta Camila. 

A oficina de horta mostrou-se uma experiência fundamental na formação das crianças, pois possibilita que elas percebam os ciclos naturais dos quais fazemos parte e estamos tão distantes na vida urbana artificial contemporânea. A meninada observa não apenas o ciclo de crescimento das plantas, mas também o sol, a sombra, o dia, a noite, as estações, as chuvas, a seca... “Tem autores, como Fritjof Capra, que falam que o plantio de horta é a grande sala de aula do século XXI”, observa Camila.

As crianças ficam encantadas quando veem crescer um pé de alface que elas imaginavam nascer no supermercado. “É muito legal a gente plantar e ver que aquilo depende do nosso cuidado, que tem uma série de fatores que influem”, diz Camila. “Um pé de alface vale muito mais do que um real, quando é a gente que planta.”

Camila nunca tinha plantado antes, aprendeu tudo juntamente com as crianças. Coincidiu que ela acabara de se mudar para uma casa, onde começou a plantar; ela experimentava em casa e depois repetia com as crianças o que ia descobrindo. “Talvez se eu fosse uma velha agricultora não tivesse o mesmo entusiasmo de ensinar”, conjectura ela. “É mais fácil ensinar pra criança quando a gente também está no processo de busca daquilo.”

A oficina de horta envolveu tanto a meninada em 2009 que a oficina de capoeira teve de ser suspensa. As crianças acompanharam todo o processo, do plantio à colheita. A preparação da terra levou um bom tempo: elas começaram tirando pedras e entulhos do canteiro, peneirando e afofando a terra; em seguida misturaram esterco e serragem. Fizeram a sementeira separada, depois plantaram as mudinhas. E continuaram regando todos os dias, em revezamento.

“Boa parte da oficina são as crianças observando, vendo o que está acontecendo”, explica Camila. Elas descobrem formigas nas plantas e querem saber por quê. Descobrem que tem pulgão no broto e que as formigas estão se alimentando deles, não estão comendo as folhas. “Tem muita coisa pra fazer na horta e esse cuidado é fundamental.”

Em 2008, a colheita foi comemorada com uma festa. Muitas hortaliças foram colhidas ao mesmo tempo e se decidiu compartilhar aquele alimento. As crianças colheram, lavaram e picaram as verduras. Uma turma preparou um bolo de cenoura; outra, um suflê de brócolis; um grupo fez uma salada; outro fez tempero. Depois todo mundo sentou e comeu junto. Em 2009, a colheita foi de berinjela: Camila levou uma receita de berinjela ao vinagrete e todos ajudaram a prepará-la.

Na casa de trás, a única oficina fixa é a de música. Na terça-feira, depois do lanche, enquanto escovam os dentes, Izabela Siqueira avisa para a turma: “Meninada, hoje o Marquinhos vai chegar”. Marquinhos é o arte-educador de música. Ele chega no horário da roda e se integra a ela, uma roda especial, formada em conjunto pelo Maternal 1 e Maternal 2, que dura de trinta a quarenta minutos. “As crianças adoram”, conta Izabela. “Tocam instrumentos, tocam pandeiro, caxixi, fazem roda, cantam. Gostam muito.”

Nos outros dias, as educadoras do Maternal dão elas mesmas atividades que correspondem às oficinas da casa de baixo e outras que já existiram, como massagem. “A gente não cria uma regra fixa”, observa Bela. “Tem dias que eles pedem pra ver livros, então tudo bem, vamos ver livros. Outro dia querem ficar jogando bola o tempo todo, então vamos jogar bola. A gente tem essa flexibilidade.”

Quando tem oficina, ela acontece depois da roda: segunda-feira é dia de massagem, quarta-feira é de artes e sexta, de construção de brinquedos. “A gente pega um potinho de yakult, pinta, amarra um barbante, e pra eles aquilo é um cachorrinho. Eles ficam correndo pelo pátio com aquele brinquedo, criam muito.” Na oficina de artes, as crianças pintam uma parede azulejada especialmente para esse fim.


FILOSOFIA PARA CRIANÇAS

Uma oficina que se destaca das outras é a de filosofia. Restrita aos Grupos 1 e 2, ela é dada pelos próprios educadores e consiste em trabalhar com as crianças questões filosóficas que elas colocam no dia-a-dia. “É difícil pegar o conceito, mas quando a gente pega saem coisas muito legais, e a oficina entra no nosso dia a dia”, observa Luci. 

O que faz a oficina de filosofia é o foco do educador: jogar um assunto na roda para que as crianças pensem a respeito dele. “A gente não pode ficar só na contação de casos, cada criança com sua experiência”, explica Luci. “O educador tem que introduzir novos elementos para que as crianças quebrem as hipóteses que têm e pensem novas hipóteses. Quando isso acontece, acontece uma oficina de filosofia.” 

Em 2009, pobre, ladrão e bandido eram preocupações recorrentes na Turma da Imaginação. As crianças perguntavam se pobre é ladrão, se pobre é bandido, por que o pobre é pobre, por que tem menino que mora na rua. Os educadores transformaram o assunto numa oficina. “Uma criança falou: ‘Pobre rouba’. Eu disse: ‘Eu conheço uma pessoa que é pobre, que não tem dinheiro, e que não rouba, ela trabalha’. Daí aquela hipótese caiu por terra e eles tiveram de construir outras hipóteses”, conta Luci. 

A oficina começou em 2007 e é orientada pela filósofa Luciana Maria Azevedo de Almeida; todas as sextas-feiras ela se reúne com os educadores dos Grupos 1 e 2 para instrumentalizar suas intervenções. Quando o educador vê que a discussão com as crianças está se esgotando, ele a encerra, sem, no entanto, formalizar conclusões. Ele faz um relatório informando o que aconteceu na oficina, o que as crianças falaram e também suas opiniões: o que ainda pode ser feito com aquele assunto ou se ele acabou.


TODAS AS CRIANÇAS SÃO CAPAZES

Na primeira vez em que foi ao Clic!, Luciana Santiago ficou encantada com a autonomia das crianças. “Elas tiravam o próprio prato e levavam pra cozinha, saíam pra ir ao banheiro sem ter um adulto por perto, participavam das decisões do dia, escolhiam do que queriam brincar. Eu achei isso sensacional, nunca tinha visto”, recorda.

A ordem que impressionou Luci foi precedida de muitas situações aparentemente caóticas e de um trabalho diário repetitivo, paciente e afetuoso. Quando Claudia e Dri abriram o Clic! para as crianças em idade pré-escolar sabiam que há dois jeitos de educar – o primeiro é de cima pra baixo, autoritário. Por exemplo: na hora de lavar a mão, vai uma criança de cada vez, acompanhada. “Eu tenho uma ajudante, a ajudante fica com todo mundo sentado em roda cantando, e eu pego um por um, vou ao banheiro, de mão dada, eu mesma levo, lavo a mão dele, ponho-o sentado na cadeira, falo: fica aqui até seu amigo chegar”, explica Dri.

Desse jeito não tem bagunça, ninguém machuca, ninguém experimenta nada, fica todo mundo limpo, tudo superorganizado. “Eu ofereço um brinquedo pra cada um, eu falo a hora que vai trocar, eu recolho os brinquedos e guardo. É um jeito autoritário, de uma relação hierárquica.”

Existe um outro jeito de educar, que é o adotado pelo Clic!, um jeito que propõe uma relação mais igualitária. É mais difícil. “Eu sei que o meu papel de adulta naquele grupo é de referência, e as crianças sabem disso, elas não duvidam da minha autoridade, mas eu vou ajudá-las a adquirir autonomia, vamos construir as regras todos juntos. Algumas coisas existem a priori, outras são construídas. Aí é que dá bagunça”, explica Dri.

A turma vai lavar as mãos pra lanchar? Tem uma criança que é rapidinha, chega logo ao banheiro. Outra fica sentadinha, vê todo mundo fazer tudo, só depois levanta. Outra no meio do caminho acha uma folha, pega, põe na boca, come, esquece que tinha de lavar a mão. Outra vê outra turma fazer outra coisa, sai correndo pra fazer junto, esquece também...

Esse que esquece, a educadora tem que ir lá lembrá-lo: “Fulano, sua turma está indo lavar a mão. Vamos?” É preciso chamá-lo mais de uma vez. O rapidinho, que correu, que gosta de fazer primeiro, não precisa; ele pode ajudar a pôr os pratos na mesa, já que gosta... Cada um é tratado do jeito que precisa ser tratado, o que é uma diferença também.

“Tem menino com quem eu tenho de ser mais brava, eu não posso dar chance, e tem menino com quem eu tenho de ser muito delicada”, explica Dri. “Tem criança que se fizer bagunça eu tenho de fingir que não vi, porque nunca faz bagunça, sua tendência é ser supercorreta. Tem criança que eu tenho de antecipar a bagunça, porque vai ser a megabagunça, depois eu não vou dar conta de arrumar. Cada um é do seu jeito, e ele vai ser do seu jeito, eu não vou homogeneizar a turma.”

É assim até as crianças conseguirem fazer isso com autonomia. O Clic! não busca que todas as turmas sejam iguais, tenham o mesmo desenvolvimento. “Para nós é um valor que cada criança possa ser única”, ressalta Dri. As crianças não andam em fila, nem fazem as coisas de uma em uma, para não dar bagunça. “Dá muita bagunça. Você pode chegar na sala às quatro e quinze da tarde e todos os brinquedos estarem no chão. Vai falar: ‘Nossa! Que bagunça!’ É um trabalho diário, da hora que chega à hora que vai embora”, ressalta Dri.

O Clic! adota esse jeito mais trabalhoso e mais difícil de educar por acreditar que as crianças são capazes. “A gente sabe que elas vão conseguir”, observa Dri. “Ela vão demorar mais talvez do que do outro jeito, mas em compensação vão saber por elas mesmas.” A criança que aprende de forma autoritária vai sempre depender do comando para agir.

A criança é capaz de aprender sem ser obrigada. Ela tem uma necessidade natural de pertencer ao grupo. Ela quer dar conta por ela. Isso é uma coisa do organismo, do ser humano. Quando a criança descobre que ela anda, ela fica felicíssima, ela só quer andar. É aquela fase em que os pais falam assim: “Estou exausto! Eu ando o dia todo atrás dela...” A criança ganhou o mundo, ela sabe que pode se deslocar sem ser carregada, ela quer fazer isso.

Quando a criança aprende que ela pode ir lá na pia e lavar a mão sozinha, ela se sente importante, valorizada e capaz. Quando ela aprende que dá conta de sentar à mesa e comer sozinha, ela põe a comida dela, o tanto que quiser, no ritmo que quiser. E isso reverte em querer cumprir aquilo que está sendo proposto pelos educadores.

Quando as atividades são adequadas, quando o educador sabe que aquele organismo precisa daquelas coisas e propõe coisas adequadas, a criança só tende a ir para frente. “Na hora que a criança vê que dá conta, ela quer fazer mais. Ela aprende a confiar nela mesma, ela se alimenta daquilo que ela faz, vê que é capaz. E quando a gente convida, sem mandar, sem dirigir, é como se a gente dissesse: você consegue, pode ir. É mais fácil fazer fila? Eu garanto que todo mundo chegue, mas eu não dou consciência pra eles que consigam fazer por eles mesmos”, ensina Dri.

Essa criança educada assim, com dois anos e meio não pede – ela levanta da brincadeira, sobe no portãozinho do banheiro, abre o portãozinho sozinha, vai lá dentro, tira a roupa, faz xixi, abaixa a tampa do vaso, sobe na tampa do vaso, pra dar descarga... Ninguém ensinou, nenhum educador falou assim: “Sobe na tampa do vaso” – mas ela é capaz, pensa por ela mesma e faz todas as coisas que vê o adulto fazer.

“Todas as crianças são capazes, elas só precisam saber que são capazes. Quem vai contar isso pra elas somos nós. Eu posso falar assim: não corre não, Fulano, que você vai cair, ou eu posso deixá-lo correr. Ele só vai aprender a correr, se ele correr. Ele vai cair? Fatalmente, ele vai cair, muitas vezes, mas se eu impedir que ele corra pra que ele não caia, ele não vai saber correr, consequentemente não vai saber subir em árvore, consequentemente vai andar de bicicleta mal...”

Quando saem do Clic!, aos seis anos, as crianças acreditam nelas mesmas e têm voz ativa. Se elas têm um problema, elas sabem aonde ir para resolver, elas têm recursos para lidar com os assuntos da convivência social. “As crianças saem daqui com um diferencial que precisa ser cultivado, porque elas ainda são muito pequenas”, observa Letícia.  


LIMITE COM RESPEITO 

No Clic! a educação é um exercício de reflexão diária. Em 2008, teve uma chuva num dia de muito calor. As crianças estavam descalças, de blusinha e fralda. Choveu, choveu, choveu. Quando a chuva parou, fez um sol maravilhoso. Uma criança pôs o dedinho na poça d’água, ainda chuviscava um pouco, a educadora advertiu: “Fulano, não vai na chuva não”. Mas as crianças foram, uma após outra. Logo estavam todos na chuva, inclusive as educadoras. Pularam na poça, rolaram, brincaram, brincaram... Depois voltaram para a sala. 

Tem coisas que o adulto repete para as crianças sem pensar; o papel do educador é se perguntar, diariamente: “Por que eu falei isso? Tudo que eu deixei hoje, eu podia ter deixado mesmo? Todas as vezes que eu falei que não podia era realmente necessário? O que eu fiz hoje que eu podia fazer diferente?” 

“A gente fica numa linha muito tênue, entre estar podando a criança e estar dando limite”, observa Luciana Santiago. Antes de dizer não à criança o educador deve se perguntar por quê. “Essa pergunta ajuda a gente a colocar limite e não podar. Por que no final do dia, no inverno, não pode brincar com água? Porque o sol já foi embora, porque já está frio, e se você brincar com água agora, pode molhar sua roupa ou resfriar. Então, agora não vale, vale no início do dia, que o sol está lá no céu, bem forte.” 

As decisões são coletivas e a criança aprende que pode fazer a sua vontade, mas não pode atrapalhar o outro. Quando uma criança não quer participar de alguma atividade, não precisa participar, mas não pode prejudicar o grupo. Pode ficar com outra turma, por exemplo, se quiser. “Se o grupo está brincando na areia e algumas crianças não gostam, preferem jogar futebol no pátio, tudo bem. Se uma criança não quer uma coisa nem outra, pode desenhar com giz no chão”, explica Luci.


EDUCADORAS E EDUCADORES

Depois dos familiares, o adulto mais importante na vida da criança é o educador. Muitas vezes ela contesta o pai ou a mãe citando a professora. “Eu falo para os educadores daqui que ser educador é uma opção de vida”, observa Dri. “Não tem jeito de ser educador aqui dentro e do portão para fora não ser.”

O educador dá o exemplo, em tudo que faz é imitado pelas crianças. Elas não sabem expressar verbalmente nem elaborar intelectualmente, mas leem nas entrelinhas daquilo que o educador fala e no seu comportamento. Interpretam seus gestos, percebem seu humor, se ele está satisfeito com aquela função, com aquele dia de trabalho.

“Essa pessoa que cuida da criança diariamente precisa ter um bom nível cultural, precisa ser uma pessoa delicada, falar bem, ser carinhosa. Precisa ter bons hábitos de vida, que ela traz de casa. Se ela não tiver na casa dela, não tem jeito de ter aqui”, ensina Dri. “Não importa a classe social dessa pessoa, mas a função dela aqui dentro é levada em consideração.”

A educadora Carol Maciel sabe bem o que é isso. Ela viu crescer uma turma inteira, durante três anos. Acompanhou as conquistas das crianças, como deixar a fralda, fazer xixi no peniquinho, comer sozinhas; viu suas primeiras brincadeiras de faz-de-conta, no Maternal 2, constituírem um grupo e descerem para a casa de baixo, no Maternal 3. Criou com as crianças relações tão fortes, que várias tinham seu retrato no quarto.

Quando mudou de turma, preparou com as crianças a troca de educador, para que elas sentissem menos. “Talvez tenha sido muito mais difícil pra mim do que pra eles”, avalia. No seu último ano de Clic! aquela turma continuava apegada a ela. De vez em quando, um menino sentava juntinho dela e pedia, carinhoso: “Conta alguma coisa de quando eu era pequenininho”.

Não é fácil selecionar os educadores, há coisas que só são vistas na convivência. A primeira fase da seleção é a análise de currículos, no fim do ano. Atualmente, o Clic! faz questão de que o candidato seja da área da educação: psicologia, pedagogia ou artes plásticas. Estas áreas indicam os interesses da pessoa, o que ela anda trilhando, mesmo sendo estudante.

A segunda parte é uma manhã de brincadeiras, precedida de uma roda, na qual os candidatos falam da sua trajetória e das suas motivações. Nas brincadeiras, observa-se o jeito de cada um. “Antes de conseguir teorizar as coisas, a gente traz o que viveu”, explica Letícia. “Se foi uma criança que gostou de brincar, que gostou de correr, que montava casinha, que gostava das bonecas, que gostava dos carrinhos, que subia em árvore, que mexia com terra, e se guarda crescimentos pessoais ligados a isso, afetividades ligadas a isso, essa pessoa vai acreditar na brincadeira das crianças.”

Os candidatos também escrevem um texto, no qual devem mostrar o que pensam sobre educação. Com essas informações é feita a seleção; como teste final, os escolhidos são convidados a passar três dias no Clic! acompanhando as turmas junto com seus educadores.

O universo da educação é muito feminino e o efeito disso é percebido nas brincadeiras das crianças: no faz-de-conta, geralmente quem cuida é a mãe, a avó, a tia. Raramente é o pai, o avô, o tio. Hoje em dia, porém, muitos homens têm interesse na educação. Ao longo da sua história, o Clic! teve vários educadores homens. Em 2009, foram dois: Júlio e Pablo.

Na convivência diária os educadores do Clic! percebem como são diferentes o impacto e o jeito de abordar masculino e feminino. As crianças sentem falta do masculino nesse universo. “Não importa se é o educador delas ou não, quando tem homem, todas querem participar de coisas com ele”, conta Dri.

A figura masculina representa a lei, ela está no ambiente infantil para barrar, ainda que não barre fisicamente ou verbalmente. “Especificamente no Grupo 1, com o qual eu tenho mais contato, e também observando a relação das crianças com as educadoras, eu percebo que há um conflito das crianças comigo, há uma relação de embate, de desafio à autoridade”, analisa o educador Júlio Izidoro.

O homem usa muito menos palavras para falar a mesma coisa, é mais prático e tem uma vitalidade diferente da vitalidade das mulheres. “Tem discussão, debate, a gente conversa, combina, mas o homem é muito incisivo, ou é ou não é, já barra de uma vez”, diz Júlio.

“O pensamento masculino contribui muito para a referência das crianças”, observa Luciana Borges. “Quando uma educadora e um educador formam uma dupla é ótimo. É importante as crianças verem que homens e mulheres podem fazer coisas juntos, brincar juntos. Isso quebra um tanto de tabus.”

Luciana Santiago achou ótimo compartilhar o Grupo 2 com o estagiário Pablo Quaglia, em 2009. “Os meninos ficam encantados, porque ele brinca de futebol, de bolinha de gude, de lutinha com os meninos, coisas do universo masculino, que eu não brincava com eles”, conta. “Quando eu entrei aqui, vi que não tinha muito futebol, parece que eu acabei incentivando isso, e hoje futebol é uma febre”, confirma Pablo.

Júlio observa que as crianças se expressam muito com o corpo. “Os meninos querem brincar de luta, de disputa, de competição, e veem no corpo masculino uma possibilidade de fazer isso.” Querendo ou não, a brincadeira fica um pouco diferente. “Tem uma brincadeira que o Júlio faz, que eu faço também, de monstro, que é correndo, pegando os meninos, levantando, rodando. A forma de brincar das mulheres é mais delicada, as meninas chamam muito mais a Luci pra brincar de mamãe e filhinha”, compara Pablo.

O educador traz o universo masculino e os meninos se identificam com ele. Traz também um pouco de equilíbrio. “Quando eu fico muito mulherzinha, querendo brincar de casinha, das coisas que eu brinquei na infância, ele puxa a brincadeira para os dois gêneros”, compara Luci. “São modos de agir diferentes”, acrescenta Pablo. “Tem coisas que eu esqueço de fazer e a Luci está sempre atenta. Os meninos veem isso, e a gente é uma referência muito grande pra eles. Eu acho importante eles verem os dois pontos de vista, a diferença de gênero, e com isso construírem sua forma de agir.”

Em 2008, a mesma turma ficava de manhã com um educador e à tarde com uma educadora. Nos grupos de estudos, quando se conversava sobre essa turma, constatava-se que a demanda das crianças para o educador era uma e para a educadora, outra. “A gente viu como é importante, como faz diferença e como as crianças podem fazer uma projeção para o papel masculino, não pra pessoa em si”, conta Dri.

Eram crianças de quatro para cinco anos, uma idade em que elas tentam entender os papéis feminino e masculino. “Existe uma cisão nessa idade, entre meninos e meninas, eles não gostam de ficar juntos. As meninas ficam muito ligadas nas coisas de meninas, os meninos muito ligados nas coisas de meninos”, informa Dri. O fato de terem um educador e uma educadora deu ao grupo referências dos dois gêneros.

“Teve um dia que eu presenciei uma discussão de duas meninas com o educador e ele olhava com cara de ponto de interrogação, sem entender o que estava acontecendo”, conta Dri. “Eu lhe expliquei: ‘Uma está fazendo intriga da outra pra você’. Ele não entendia aquilo porque não é do universo masculino. Nessa idade ele estava lutando, brincando de caminhão, não passou por isso. E pra nós, mulheres, é a coisa mais fácil ler o olhar da criança nessa hora, o jeito de falar, e entender.”


MENINOS E MENINAS

Por volta dos quatro anos, as crianças lançam o olhar para a diferença de gênero. Os meninos tentam entender o que é ser homem, e isso fica muito claro nas brincadeiras viris. Eles são barulhentos, gostam de lutar, de correr; para eles, as meninas são detestáveis, nada interessantes. É difícil para o educador propor alguma coisa que os dois grupos aceitem.
 

As meninas ficam muito vaidosas, vão o Clic! maquiadas, com muita bijuteria, vestem fantasias de princesa, têm de usar salto, coroa. “Elas fazem uma coisa interessante, difícil de explicar, que são intrigas nas relações”, conta Dri. “Elas mudam de parceria e excluem as outras: ‘Ah não, hoje eu vou brincar com Fulana, porque ela tem batom, você não tem, você não entra na nossa brincadeira’. No outro dia, já é outra dupla. Entre os meninos não tem isso.”
 

Menino brinca em bando; se estão brincando de caminhão, todos estão naquela brincadeira. Trombam, batem, machucam, choram e voltam para a brincadeira. Menina fica com raiva, sai da brincadeira: “Não vou te chamar pro meu aniversário”. Essa diferença é muito forte com quatro anos, depois atenua um pouco. Aos quatro anos, as meninas querem jogar futebol com os meninos, mas eles não deixam. Também é difícil para o menino participar da brincadeira das meninas. A educadora precisa intervir: “Fulano quer brincar, o que ele pode ser?” Não é raro as meninas responderem: “Ele pode ser o cachorro”. Ou neném: “Fica aí deitado, dormindo”...
 

Com cinco, seis anos, eles já conseguem achar uma brincadeira na qual todo mundo brinque e cada um encontre seu papel. Os meninos permitem que as meninas entrem no futebol; elas deixam que eles brinquem de mamãe e filhinha. Na brincadeira, os papéis andam muito divididos, os pais fazem compra, vão trabalhar, cuidam dos filhos, dão comida para os filhos; as mães trabalham, as avós ficam em casa cuidando das crianças. E eles têm profissão: médico, motorista... 


FORMAÇÃO CONTÍNUA

A formação dos educadores do Clic! é feita ao longo do percurso, continuamente. Antes de assumirem uma turma, eles são instrumentalizados com informações teóricas. Todos, estagiários e educadores, têm três momentos de formação: a supervisão semanal, individual; o grupo de estudo, quinzenal – numa semana os educadores da casa da frente, na outra, os da casa de trás; e a reunião mensal de toda a equipe, no último sábado do mês. A participação de todos torna a proposta do Clic! uma construção coletiva.

Quando o Clic era menor, Claudia e Dri orientavam as educadoras, durante o dia de trabalho. Ao longo do trabalho, e com o crescimento, elas viram que era preciso instrumentalizar muito bem os educadores. “Não era possível mais a gente acompanhar todas as turmas tão de perto, e muitas coisas escapavam”, conta Dri. “A gente precisava garantir que aquelas pessoas que estavam diretamente com as crianças tivessem uma bagagem boa e soubessem resolver as situações do jeito que a gente acha que é o melhor jeito. E começamos a fazer os grupos de estudo e a supervisão.”

A supervisão trata de assuntos urgentes: o que está mais difícil de resolver, uma questão para a qual o educador está sem estratégia ou com alguma dúvida. É nas supervisões também que direção, coordenação e educadores planejam as atividades que serão desenvolvidas com cada grupo de crianças.

O educador tem expectativas em relação ao grupo, mas não tem um planejamento de atividades que deverá seguir; é o seu olhar que orienta o trabalho; na supervisão, ele é confrontado com outro olhar. São identificados os interesses específicos do grupo e discutidos os caminhos que podem ser seguidos para aprofundá-los. Exemplos: que tipo de brincadeira ajuda no letramento; que tipo de brincadeira ajuda a aprender os números; como pesquisar em cada idade.

“Na supervisão a gente vê o que está bom, o que não está, como o grupo está funcionando, o que o educador pode fazer pra melhorar”, informa Luciana Borges. O educador fala um pouco de cada criança, do seu desempenho, o que ela tem feito, que questões tem trazido para o grupo. “Se tem alguma criança que a gente acha que os pais devem ser chamados pra conversar, pra investigar alguma coisa, é nessa hora que a gente fala”, acrescenta Luci.

Mariana Tibo diz que a supervisão é o momento em que o educador tem uma pausa: ele para, observa sua semana e levanta as dificuldades que está tendo. “Às vezes é uma coisa pessoal, que me incomoda porque eu não sei fazer diferente”, conta. “Não é só a criança que está se construindo, o educador também está. Então é uma troca muito verdadeira.”

Os grupos de estudo são para estudar assuntos do interesse geral, que têm a ver com o trabalho de todos os educadores. “A gente separou em casa da frente e casa de trás por causa das fases do desenvolvimento da criança. Muitas vezes a gente estuda a mesma coisa, o mesmo texto ou o mesmo autor, mas com olhares diferentes, como as coisas funcionam nas diferentes idades”, explica Dri.

2008 foi um ano muito produtivo para o fortalecimento da equipe. Muitas vezes o grupo de estudos foi usado para discutir as relações do grupo, fundamentais para que todos caminhem juntos. “Aquilo que a gente está ensinando para as crianças tem que ser trabalhado entre nós também”, explica Luci. Foram discutidos os entraves do dia a dia, coisas práticas, como horário de saída, horário de chegada, organização da casa, dos materiais.

No primeiro semestre de 2009, o Clic! deu um passo adiante: foi elaborado um curso para todos os educadores, com quatro módulos de seis aulas e duração de três meses cada um. Concebido e organizado pela arte-educadora Camila, com apoio da Dri e da Letícia, o curso buscou instrumentalizar os educadores no seu trabalho diário e foi ministrado por professores convidados. Os temas foram escolhidos com base na prática do Clic!, entre assuntos que as educadoras queriam aprofundar, para instrumentalizar seu trabalho no dia a dia.

O primeiro módulo foi sobre a relação na educação – as implicações da relação do sujeito que ensina e do sujeito que aprende, desse grupo de pessoas que se encontram nesse espaço de ensino e aprendizagem. “Esse módulo trouxe muita novidade”, avalia Luci. “Ele ajudou a melhorar as relações, tanto entre os educadores, quanto dos adultos com as crianças.”

O segundo módulo foi sobre música, com o objetivo não de formar músicos, mas de possibilitar ao educador usar a música como um recurso no dia a dia. “O professor tirou o monstrinho da música pra gente, aquela coisa que a gente diz: ‘Eu não sei tocar’, e nem pega o instrumento, com medo”, conta Luci. “Ele mostrou que a gente pode usar um instrumento pra contar história, pra tornar aquele momento mais interessante.”

O terceiro módulo foi sobre a brincadeira e o sujeito que brinca, o significado da brincadeira para a criança. Ele resgatou muitas brincadeiras que os educadores não lembravam mais e que passaram para as crianças, ajudando a renovar a cultura popular. O quarto foi sobre festas populares e o ciclo junino da tradição de Minas Gerais. “A nossa festa junina é muito bacana, mas a gente queria fazer pesquisas, buscar coisas novas”, explica Dri.

Cada módulo foi dado em três semanas e teve seis aulas. O curso foi aberto a educadores e pessoas interessadas de fora, para propiciar uma troca de informações que o Clic! considera rica. “Saber o que as pessoas estão desenvolvendo em outros lugares, o que elas estão pensando e trocar as experiências, acrescenta pra prática de todo mundo”, observa Dri.  


O REGISTRO DO COTIDIANO

O dia a dia das crianças do Clic! é documentado pelos educadores em fotografias, filmes e anotações. No fim do semestre, cada educador elabora o Registro da sua turma e encaminha uma cópia para cada família. O Registro é uma espécie de memória da evolução da criança. Nos últimos anos ele vem sendo feito na forma de CD, mas já foi em papel, em diversos formatos. 

No primeiro semestre, o Registro é mais focado na rotina do grupo, para que os pais entendam como funciona o Clic!. O do segundo semestre costuma mostrar os projetos nos quais as crianças se envolveram. Ambos são ilustrados com fotografias. 

“Como eu já gosto de tirar fotos, fico com a máquina pendurada”, conta Izabela Siqueira. “Têm uns filminhos que eu fiz de algumas crianças que eu falo: ‘Gente, os pais têm que ter acesso, para verem o que o filho está fazendo’. Porque é muito curioso como a criança evolui tanto. Acho muito legal registrar isso.” 

Em 2008, a história predileta da sua turma foi João e o pé de feijão. “Eles gostavam muito de mexer na terra, e como eu também adoro plantas, plantei feijão com eles, plantei girassol, cada um levou pra casa seu girassol”, recorda Izabela. “Foi um projeto que eles demandaram. Na roda, sempre lembravam de molhar o feijão. Pra eles era o máximo ver o feijão crescendo.” Ficou tudo registrado.


BRINCAR É MAIS QUE BRINCAR

As educadoras do Clic! são capazes de descrever características das crianças que até suas mães desconhecem. “A gente sabe falar tudo da criança, porque a gente a vê brincando”, conta Carol Maciel. “Observando a criança brincar, a gente a conhece muito mais. A gente sabe se ela está bem ou não, como ela interage, como lida com as frustrações, como reage quando faz uma coisa errada. Ela gosta de desenhar? Ela gosta de brincar na areia? Ela gosta de correr? Esse conhecimento é o grande diferencial.”

As crianças começam brincando sozinhas, no Maternal 1; reparam todo mundo, criam confiança no lugar. Enquanto cuidam, as educadoras brincam com elas. “A gente está trocando uma fralda e canta com eles, canta parlendas”, conta Izabela Siqueira. As crianças ajudam, participam, imitam: pegam a boneca, trocam a fralda dela, passam pomadinha. Adoram ouvir histórias e depois as repetem. Adoram fazer comidinha, fazer massagem. Numa fase em que batem, mordem, tomam o brinquedo do amigo, a massagem as ajuda a perceber o corpo do outro.

As crianças do Maternal 1 também adoram brincar sob a copa da mangueira, acham os micos sensacionais. O pátio para elas é enorme: elas correm, jogam bola, brincam de esconde-esconde, acham o máximo ver o amigo que estava escondido reaparecer. E assim vão descobrindo o outro, percebendo que ele não vai sumir pra sempre, que vai voltar, que vai reaparecer, que é uma das brincadeiras mais importantes nessa idade.

No segundo semestre, essas crianças começam a enxergar o outro, começam a chamar o amigo para brincar, começam a formar um grupo. Nessa época tem a retirada de fralda, e elas vão descobrir que conseguem segurar o xixi e o cocô. A cada brincadeira, as crianças estão descobrindo coisas. “Nem é preciso pegar um livro pra pesquisar, elas estão pesquisando o tempo todo”, observa Izabela.

Elas ainda não formam um grupo, mas na roda estão juntas, participando, olhando uma para a outra, reparando quem veio, quem não veio. Elas dão a mão para o amigo, cantam, discutem o que vão fazer, escolhem as músicas que querem cantar. Às vezes uns querem uma música, outros querem outra, e todos cantam as duas, em nome da amizade que está se formando ali.

Brincando eles estão buscando sua autonomia: levam seu pratinho pra bacia, seu copo, guardam sua cadeira. Ajudam a organizar o espaço, escovam os dentes sozinhos para criar o hábito. Sempre por meio da brincadeira, cantando musiquinhas: “Quem ajuda, quem ajuda a guardar os brinquedos? A Bela ajuda, quem mais vai ajudar?” E enquanto brincam vão guardando os brinquedos, organizando o espaço, ajudando as educadoras e aprendendo.

Todos os dias, no começo e no fim do turno, as crianças da casa da frente têm atividades no pátio. O pátio é um lugar de brincadeiras muito rico para as crianças. Além do próprio espaço, onde um simples graveto encontrado no chão pode virar um brinquedo, elas gostam muito do contato com as crianças de outras idades. “Elas aprendem na interação com o outro”, explica a educadora Alexandra Lopes, do Grupo 2.

A brincadeira no pátio pode ser folclórica, na qual os grupos brincam juntos, ou outra que as próprias crianças inventam, sem a participação do educador. As brincadeiras folclóricas têm regras: mar vermelho, corre cotia, pique, coelhinho sai da toca, corda, boca de forno, amarelinha... Se as crianças querem brincar livremente, o adulto dá licença, fica à parte, porque é uma hora importante para elas produzirem. “Elas produzem saber o tempo todo”, observa Alexandra.

Quando estão todas as crianças juntas no pátio, quem chega tem impressão de que elas estão soltas, que não tem ninguém olhando por elas. É só impressão. “A gente está o tempo inteiro olhando, a gente está o tempo inteiro focado nas crianças”, conta Viviane Prates. “O final do dia é um momento muito esperado por elas para brincar sozinhas, com as crianças de outras turmas. Muitas vezes a gente propõe a brincadeira e fica lá brincando sozinha, porque ninguém quer brincar com a gente.”

Brincadeiras simbólicas estão muito presentes todos os dias. As crianças brincam no galpão, no pátio, na sala de fantasia; se fantasiam, se maquiam. “Geralmente é uma brincadeira muito rica e costuma durar muito tempo, eles ficam muito envolvidos.” Muitas vezes vão brincar de casinha, elas que chamam de mamãe e filhinha.

“Elas é que deram esse nome”, conta Dri. “De geração em geração, aqui dentro, esse nome vai passando, pegou, ninguém ensinou. Dependendo das crianças e da idade, a brincadeira tem muitas personagens e muitas funções.”

A brincadeira simbólica tem várias funções, uma delas é ajudar a criança a compreender o mundo em que ela vive. “Outra função é uma coisa que a gente chama de ‘liquidar desejos’. Eles aprendem coisas da vida real via brincadeira”, conta Dri. “Tem o caso de duas meninas, primas, que quando uma ia à casa da outra elas sempre choravam pra ir embora, não queriam se separar. Aí um dia elas inventaram de brincar de casinha: a brincadeira era encontrar; uma ia à casa da outra, despedia, cada uma ia embora pra sua casa. Montaram uma casinha, panelinhas, tudo, mas a brincadeira era só essa: ‘Oi, tudo bem’, ‘Ah, então tchau, até amanhã’.  E aí, na brincadeira, elas entenderam que se despedem, depois voltam, e nunca mais choraram.”

As funções materna e paterna também são compreendidas na brincadeira: a mãe que sai pra trabalhar, o pai que sai pra trabalhar, as compras de supermercado; tem mãe muito brava, tem mãe muito amorosa. Elas reproduzem situações de doença na família: quem cuida, quem leva ao médico, quem dá remédio. Dizem: “Toma aqui”; o outro responde: “Não quero”. E chora. “Se a gente não estiver enxergando, acha que tem alguém chorando de verdade, corre lá e vê que é a brincadeira acontecendo”, conta Dri.

“A impressão que dá é que essa brincadeira é uma pausa, eles estão lá dentro, naquele tempo, naquele lugar, que é a brincadeira. Quando tem cachorro na brincadeira, é cachorro mesmo: anda de quatro, tem coleira, faz xixi igual cachorro, só late. Você chama: “Vem lanchar”, e a criança vem latindo, senta igual cachorro, porque ele é um cachorro.”

Quem não se interessa em brincar de mamãe e filhinha, inventa outra coisa; cada turma se organiza do seu jeito. As crianças brincam com outras de idades diferentes, se agrupam por afinidade. Dependendo da idade, as meninas não gostam de brincar com os meninos. Os meninos inventam brincadeiras com carrinho, de correr, de trombar, e as meninas não gostam, elas ficam em outro lugar do pátio, brincando de coisas mais tranquilas, com seus segredinhos ou com brinquedos que trouxeram.

O tempo da brincadeira precisa ser mais orgânico, menos artificial. Quando a educadora percebe que a brincadeira está perdendo sentido, que as crianças estão ficando cansadas, ela oferece outra atividade. É preciso sair de uma brincadeira e entrar em outra num movimento suave – mesmo que a brincadeira seja reorganizar o espaço ou fazer a refeição. Isso é uma coisa que as educadoras do Clic! vêm aprendendo, e que às vezes é difícil – para os adultos, não para as crianças.

As atividades eram alternadas de meia em meia hora. Logo se viu que o tempo da criança não podia ser marcado no relógio. Se elas estão brincando de faz-de-conta, por exemplo, meia hora costuma ser pouco tempo; a brincadeira está muito divertida e as crianças querem continuar. A solução pode ser continuar a brincadeira em outro espaço. “Eu posso levar as princesas pra viajar na praia, e aí nós vamos pra areia”, conta Marina Pongeluppi.

Há também o limite real de tempo: chega a hora do lanche, a hora do almoço. Os educadores procuram não romper o que está acontecendo. “Outro dia eu fui lanchar com os meus meninos num restaurante, que fazia parte da brincadeira”, explica Marina. “A gente vai tentando entrar com a rotina da casa dentro da brincadeira das crianças, e dá muito certo.”

É preciso parar para as refeições, que têm horário, mas isso pode ser feito de um jeito suave. A turma de Maternal 3 em 2009 chamava-se Turma do Elefante. Em vez de falar: “Turma do Elefante, acabou brincadeira na brita, vamos para o almoço”, a educadora chama as crianças imitando o urro dos elefantes e fazendo o braço de tromba: “Elefantinho, a comida dos elefantes”. E os elefantinhos, as crianças, vão correndo lavar as mãos.

E a manhã passa, a tarde passa, e às vezes não dá tempo de fazer tudo que a turma combinou. Uma brincadeira que o educador achava que ia demorar só um pouquinho se estendeu durante um bom tempo. “Aí no final do dia a gente fala: ‘Nossa! Não deu tempo! Vamos deixar pra amanhã...”, conta Carol Maciel.

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